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O Casebre da Colina

O que parecia ser o fim era apenas o começo de uma sequência de acontecimentos extraordinários que sempre vinham repletos de suspense e magia.

Compre aqui o livro 'O Casebre da Colina'

(Obra de minha autoria)

Abaixo um trecho do livro para você ler.

O Casebre da Colina

A história que o mundo quase não conheceu

   O dia se findava tempestuoso e frio. Eu viajava entre a negritude de uma tormenta incessante que praticamente impossibilitava a visão. Nos céus, relâmpagos contínuos prenunciavam a persistência daquela situação. Na estrada de terra, meu carro serpenteava naquele lamaçal abundante, mas eu precisava seguir, afinal estava em um lugar desconhecido, tendo apenas a sorte como minha única esperança. Como se não bastasse tudo o que já acontecia, percebi que a luz do meu veículo estava se tornando cada vez mais fraca, logo entendi que a bateria não estava sendo carregada e muito em breve iria se esgotar. Sabia que, quando isso acontecesse, teria que ficar ali parado, isolado em meio àquele temporal. Antes que isso acontecesse, eu resolvi adentrar outra estrada ainda mais arruinada, pois tive a impressão de ter visto uma pequena luz aparentando não muito distante. A ideia era chegar até uma residência qualquer onde pudesse ao menos ficar mais seguro até o amanhecer para resolver a situação com mais tranquilidade. Por vezes, o carro quase encalhava, e eu já nem podia usar os limpadores de para-brisa para economizar a energia que se esgotava cada vez mais. Uma neblina intensa parecia disputar com a chuva qual ocultaria mais minha já limitada visão. Porém, a sorte não me abandonou, após uma longa subida, finalmente consegui chegar até uma cabana. A essa altura, os faróis do carro praticamente já não iluminavam mais. E de fato, logo se esgotaram completamente, nem me permitindo chegar direito, parando a poucos metros daquela casinha que se tornava percebida apenas pelos intensos clarões dos relâmpagos e uma tênue luz que escapava por entre as inúmeras fendas das suas precárias paredes. Desci e saí correndo entre os pingos torrenciais em sua direção. Como se já esperasse pela minha chegada, um senhor de idade já avançada saiu na porta com uma lanterna e, com um sorriso confortante, acenava para que eu me apressasse. Me acolheu caridosamente. Me deu uma toalha para me enxugar, pediu para que me sentasse em uma cadeira de assento tecido em palha. Entre a pálida luz de uma lamparina, estava eu no interior daquela aconchegante cabana, muito grato pela caridosa ajuda recebida daquele senhor que emanava explicitamente sua bondade. A chuva, que até pouco tempo atrás era assustadora, agora, no aconchego daquele singelo lar, a ouvia-a bater agradavelmente na cobertura do sapê como se fosse a mais sublime das melodias. O que parecia estar no auge da perfeição ficou ainda melhor quando aquele bondoso homem me serviu um café quente com pão caseiro, como se adivinhasse a fome intensa que eu sentia naquele momento. Nunca comi com tanto prazer em minha vida. Mas apesar de tudo, eu estava me sentindo um estorvo. Disse que não pretendia incomodá-lo mais e iria para meu carro e passaria a noite lá. No entanto, fui convencido a ficar ali mesmo, pois iria arrumar um lugar para que eu pudesse me acomodar e seguiu falando que não costumava dormir cedo e, se eu quisesse, poderíamos conversar um pouco, pois se sentia muito sozinho e gostava quando aparecia alguém para conversar. Eu, que costumo ficar trabalhando quase a noite toda mesmo, achei até boa a ideia, pois a essa altura eu já estava curioso para saber mais daquele senhor. Sempre gostei muito de ouvir os relatos das pessoas mais antigas e ele tinha todo o jeito de quem tinha muitas histórias interessantes para contar. Pesando assim, disse que ficasse à vontade para conversar e seria um prazer ouvi-lo. Sem exitar, ele suspirou fundo, colocou mais café na minha xícara, dizendo em um tom de brincadeira que era para não me deixar dormir, pois a história que iria contar seria longa. Sentou-se ao meu lado e, com um semblante, embora cansado, expressando muita satisfação, disse:

  Meu ilustre hóspede. Peço licença para ocupar um pouco do seu precioso tempo, mas é por uma causa plausível e nobre. O senhor agora é talvez minha única chance de levar ao conhecimento do mundo a mais bela, enigmática e instrutiva história que ouvirá em sua vida. Numa tentativa de fazê-lo sentir a emoção e o desejo por um mundo mágico, justo, com acontecimentos sublimes. Contarei tudo, todos os detalhes. Saiba, meu amigo, que todos os grandes eventos felizes foram antes elaborados por muitos outros de natureza penosa, que foram moldando as situações para possibilitar e evidenciar ainda mais o valor e o prazer de tal resultado confortante. E se tudo isso não for esquecido e mencionado para a pessoa certa, esse bem continuará se multiplicando, instruindo e como se regenerando em outros momentos, provocando novas boas oportunidades para grandes felicidades. 

Fiquei surpreso, pois não esperava que daquele singelo ancião pudessem surgir palavras tão profundas e bem colocadas. Tão logo já fiquei mais atento e muito curioso. E ele prosseguiu:

   O senhor estava até agora pouco em uma situação muito difícil, pensava certamente que estaria arruinado, não é mesmo?

Ele acertou precisamente, eu, de fato estava em pânico. Pois nunca estive por aquelas bandas e certamente pensei que ia ficar na estrada aterrorizado, sem a menor chance de sair e procurar ajuda.

   Essa situação certamente fez evidenciar ainda mais o prazer de ter encontrado minha humilde casinha. Talvez não percebesse o quão aconchegante ela é se a situação fosse diferente, sem os acontecimentos difíceis que experimentou.

   Diante de afirmações tão sábias, nada mais me restou a não ser reforçar minha atenção, pois senti que algo muito interessante ouviria dali em diante. E com voz cativante, aquele senhor prosseguiu.

  Era um lugar lindo, cheio de vida. Muitas montanhas majestosas se erguiam naquele longínquo horizonte cativante. Na altura do meio de uma colina, se encontrava uma humilde morada, onde vivia uma família composta por cinco pessoas: Noêmio, sua esposa Margarida e seus três filhos, Saron, Rosália e Jasmim. A diferença de idade entre ambos os filhos, era de apenas um ano, sendo Saron o mais velho, depois Rosália e a mais nova, Jasmim. Embora fossem todos ainda muito pequeninos, ambos se levantavam cedo para ajudar seus pais nas lavouras. Noêmio era um homem enérgico, trabalhador e muito determinado em melhorar cada vez mais sua situação financeira. Onde moravam era um lugar privilegiado, de um lado se erguia a encosta de uma colina e do outro se estendia um lindo vale que proporcionava uma deslumbrante vista. Ao findar da noite, o dia se apresentava ao som dos passarinhos que cantavam, anunciando o emergir do sol lentamente sobre aquele longínquo horizonte nebulento, rompendo a vasta neblina que ainda pairava sobre aquela baixada abrangente. Nos arredores, perambulavam eufóricos as galinhas, patos e outros animais que animavam ainda mais aquele lugar encantador. Embora tudo tivesse um clima de magia, as palavras de Noêmio soavam em evidência, alertando para que se apressassem com o café que o trabalho os esperava

Eu já estava envolvido com aqueles relatos. Tanto que nem lembrava mais que estava com problemas com o carro e preso em um lugar aparentemente inóspito, enfim, já estava até agradecendo pelo acontecido, pois aquela cabana, aquele clima chuvoso e ouvindo aquele senhor contar uma história tão promissora era algo muito prazeroso. Lá fora, os relâmpagos, os trovões e as águas ao cair no sapé complementavam, dando um clima ainda mais emocionante. Soavam tal como uma linda melodia que se comportava como trilha sonora daquele filme que eu criava no imaginar em consequência das interessantes palavras daquele bondoso senhor que seguia dizendo:

As crianças não refutavam em trabalhar e iam todas sem hesitar, eram amáveis, todas dotadas de grandes sensibilidades, mas que Noemio ignorava, não conseguia interpretá-las como qualidade. Tinham muito amor pela natureza e eram completamente sintonizadas com ela, gostavam dos animais e não suportavam nem a ideia de vê-los sofrer. Não aprovavam o ato de seu pai usando os cavalos para puxar os arados e sofriam muito com isso. Enfim, não havia nada que pudessem fazer sem sofrer consequências verbais severas. Mas iam felizes para a roça, já que lá ficavam em um contato ainda mais direto com as belezas do campo. Talvez por uma força maior, possuíam o hábito de colecionar sementes de todas as frutas que comiam e, para isso, eles tinham um lugar secreto onde as guardavam com muito amor e carinho, pareciam prever o dia em que elas seriam úteis. Enfim, eram crianças dotadas de um nítido e evidente valor que não podiam manifestar naquele tempo, temendo as repreensões de Noêmio, que sempre eram muito assustadoras.

Conforme ele avançava com suas palavras, eu montava os cenários tais como um filme de alta resolução e parecia até ouvir as três crianças cochichando às escondidas, ocultando as suas sementes. Dei um longo suspiro e perguntei sobre a mãe, qual a relação tinha com seus filhos, e ele falou: 

Margarida também sofria, tal como seus filhos, era uma mulher amável, dócil e raramente podia agir conforme suas vontades, pois sempre eram opostas às opiniões do marido. No entanto, ela sabia das sensibilidades dos filhos e orava diariamente para que Noêmio se conscientizasse disso e permitisse que eles fizessem valer suas qualidades. Mas, como mãe, tem suas percepções aguçadas em relação a seus filhos, no fundo, sabia que, embora isso fosse acontecer, não seria tão cedo. Dentre tantas qualidades naquelas crianças, uma era mais forte e promissora, mas como sempre também era sufocada, já que as poucas vezes que se manifestaram perante o pai foram estupidamente reprimidas por considerar aquilo algo de pessoas vagabundas. Uma avantajada vocação pela música em ambos, mas diante das circunstâncias, se limitavam apenas a resmungar baixinho, às escondidas, suas melodias em coro entre os três. Como se fosse uma dádiva concebida dos céus, sem nenhuma instrução, todas possuíam grande habilidade com suas vozes e uma impressionante criatividade para formarem harmonias mesmo sem nunca terem tido acesso a nenhuma instrução. Sonhavam, ainda que acordados, em se tornarem músicos. E quando Noêmio se encontrava ausente, era como se despertassem de um longo pesadelo, abrindo seus olhos para um mundo de fantasia. Lançavam suas melodias a ecoarem nos ares daquele vasto e deslumbrante vale. Mesmo ao longe, podia-se ouvir as respostas dos pássaros que pareciam agradecer, complementando com seus cantos, enriquecendo ainda mais aquela harmonia. Como se a natureza sentisse, levava, com uma suave brisa, seus cantos, fazendo-os alcançar até os confins daquele horizonte. Porém, tudo era silenciado novamente a partir do momento em que o pai retornava, recomeçando o pesadelo.

Não tenho nesse momento a ordem das palavras capaz de descrever aquele homem contando uma história tão comovente de forma tão bela. À medida que suas emoções iam se intensificando, ele ficava mais habilidoso e dava um toque poético, tornando ainda mais impressionante seu relato, prendendo minha atenção de tal forma que eu nem quase respirava para que o som do meu suspiro não interferisse na minha concentração. Estava muito grato por todo o bem que estava me proporcionando naquela noite tempestuosa. Mas, calado, deixei que prosseguisse

Tudo voltava a ficar tenso e seus lindos cantos eram então mais uma vez silenciados, porém, não extintos, pois continuavam discretamente seus murmúrios melodiosos, tão silenciosos que praticamente se dissolviam no soar dos ventos. E assim seguiam oprimidos dia após dia, mas suas ações ocultas não paravam e sempre que surgiam oportunidades de comer uma fruta diferente, que encontravam muitas vezes na floresta ou quando possível conseguiam dos seus vizinhos, instintivamente já guardavam as sementes. Como se temessem a possibilidade de nunca mais ter a chance de comê-la novamente se não plantassem. Mas isso ainda não podia ser feito, pois Noêmio queria mesmo era abrir mais espaço para ampliar suas lavouras e, por isso, ainda cortou as únicas árvores que tinham por perto, restando somente a floresta nas margens do rio. Essas ações atingiam severamente as almas dessas pobres crianças, tal como uma lança cravando-se em seus corações, mas diante de tudo, restava apenas chorar em silêncio, pois nem isso podia ficar visível, já que as reações do pai eram duvidosas e quase sempre desagradáveis. Um dia, numa ação rotineira, Margarida pegou um balaio cheio de roupas sujas e desceu até o riacho para lavá-las. Levando consigo seus três filhos para ajudá-la e fazer-lhe companhia, mas, no fundo, ela queria também proporcionar mais uma oportunidade para que eles pudessem cantar e interagir de forma mais confortável com aquela natureza, já que naquele lugar ela se apresentava muito mais evidente e agradável. Sempre que desciam até o riacho, sentiam-se muito felizes, pois o clima agradável daquele ambiente parecia ampliar ainda mais suas emoções e inspirações. Sobre as pedras ficavam sentados cantando suas lindas canções que se tornavam ainda mais admiráveis ao se harmonizar com o relaxante ruído das águas mansas, acariciando seus pezinhos e descendo serenamente, adentrando a verdejante mata que a cobria.

    Eu jamais havia ouvido um relato de forma tão bem elaborada e emocionante. Falava sem tropeço, parecia ler um livro com letras grandes. Embora aquele ancião aparentasse ser um simples camponês com características muito singelas, se percebia nele uma grande sabedoria e uma habilidade indiscutível para manipular as palavras de forma tão harmoniosa, e isso também estava sendo motivo de minha surpresa. Sua expressão era tão atraente que transformou a situação geral que antes era desesperadora em uma noite especial, onde eu nem tinha mais pressa para que terminasse. Enquanto isso, a tormenta não cessava, mas o som das águas era amortecido pela cobertura do sapé, o tornando mais suave e aconchegante. Pelas frestas da parede, se viam os reflexos contínuos dos raios seguidos por imponentes trovões que transformavam aquele clima ainda mais interessante e apropriado para enriquecer aquela história. Por algum momento, ele olhou para o fogão a lenha que ainda tinha vestígios de brasas e disse que esquentaria um leite de cabra para tomarmos com café e pão novamente. Eu já estava mesmo esperando por isso, afinal aquele pão estava uma delícia. Assim ele fez, mas em silêncio, nada perguntava sobre mim. Sentou-se novamente em sua cadeira e deu sequência a seu maravilhoso conto.

   Então, meu tão esperado hóspede: os dias foram se passando e o chefe daquela família nada mais fazia além de perseguir meios de ganhar mais dinheiro a qualquer custo. E com esse propósito, teve a ideia de cortar, enfim, todas aquelas árvores que ainda restavam em sua propriedade para transformar em pastagem e criar gado. Pensando que com um bom rebanho conseguiria lucrar ainda mais e melhorar a situação financeira que sempre fora muito precária, pois apesar de ser um homem rude, sem muita noção, era muito trabalhador. Sua esposa, Margarida, tão dócil, sabia de tudo dos seus filhos e os apoiava, mas também nada podia fazer de tão significante além de criar algumas situações que possibilitassem uma liberdade, ainda que momentânea, para seus filhos se soltarem e manifestarem seus talentos. No fundo, ela tinha a intuição de que aquelas qualidades não aconteceram por mero acaso, mas uma condição imposta por Deus para realizarem algum dia uma importante missão. Afinal, ela era muito religiosa, e era exatamente por conta disso que se esforçava para evitar qualquer coisa que levasse a uma desavença mais significante com seu esposo. Mas estava sempre incentivando as crianças com palavras precisas e sábias, as quais davam a eles a esperança de que um dia iriam fazer valer seus talentos, se tornando personagens de eventos muito relevantes para o mundo. Certa vez, estava ela com seus filhos no riacho, enquanto batia as roupas sobre as pedras. As crianças subiram rio acima por uma distância relativamente pequena, se depararam com uma gruta muito linda. Era enorme e se mostrava misteriosa, mas atraente a tal ponto que não resistiram e adentraram até seu interior. Quando falaram, perceberam suas vozes recochetearem nas paredes, produzindo uma acústica muito interessante. Sem exitar, começaram a cantar e perceberam que suas vozes ficavam ainda mais harmoniosas naquela situação. Impressionados, voltaram correndo para contar à mãe, que já se encontrava preocupada, o que haviam descoberto. Margarida ficou curiosa e foram todos lá para ver. Foi muito emocionante para a mãe ouvir seus filhos cantando naquele interior rochoso, apreciando pela primeira vez suas vozes com aquele efeito lindo e natural. Margarida também era dotada de uma grande sensibilidade e, por isso, suas emoções atingiram níveis extremos. Fechou os olhos e libertou seu imaginário. Viu-se a pairar entre plumas celestiais ao som de um coro de anjos que estampavam em suas faces a imagem de seus filhos. Um acontecimento de magnitude sublime que a fez, em prantos, pedir aos céus para que as qualidades daquelas crianças não ficassem em vão. A partir daí, secretamente, era para lá que iam frequentemente treinar suas vozes.

De tão concentrado e emocionado que eu estava, cheguei a ver e ouvir no meu imaginário todo esse acontecimento de uma forma tão intensa que podia apostar que o real local seria exatamente como idealizava. Como eu sempre fui muito sonhador, me coloquei como um personagem camuflado naquela história que rondava apenas a observar. Mas mesmo estando muito interessado em saber todo o desfecho daqueles relatos, senti uma preocupação, pois já aparentava ser tarde da noite, imaginei que pudesse estar atrapalhando o sono daquele bondoso homem. Sugeri que terminasse de contar sua linda história no dia seguinte, pois eu estava tão curioso que não sairia dali sem saber como iria ser o final. Ele me olhou com aparência de tranquilidade e disse que fui até lá conduzido por uma força sobrenatural, exatamente para ouvir aquilo que ele estava contando, e essa mesma força estaria impedindo o meu sono, por isso, se eu permitisse e desejasse, iria continuar. Embora não crendo muito nessa força a qual mencionou, dei graças a Deus por pensar assim, afinal, então iria ouvir ainda mais. E foi o que aconteceu.

Passaram-se algum tempo e Noêmio avançou realmente com seu propósito e já estava com seus bois no pasto que, a essa altura, já ocupavam completamente a propriedade, de forma que não havia mais quase nenhuma vegetação, exceto naquela região por onde passava o rio. Apesar de ter de fato ampliado os seus ganhos um pouco mais com seu rebanho, começou a ter problemas por falta de água, uma escassez que foi se intensificando cada vez mais a ponto de quase impossibilitar o suprimento para matar a sede dos animais. Até mesmo o rio já se agonizava, restando apenas um pequeno fio que ainda corria, e para tentar resolver isso, ampliou o pasto avançando até as margens, possibilitando o acesso dos animais para que pudessem beber. Seus filhos secretamente choraram ao verem o pai cortando as últimas árvores, eliminando o único lugar onde podiam fazer valer, ainda que escondidos, os seus aguçados talentos. Eram apaixonados por florestas, mas nada puderam fazer perante a certeza de uma severa reação que presenciariam. Como se não bastasse a extinção das árvores que faziam sombras e impediam a rápida evaporização, dando mais tempo para a terra poder absolver a umidade, agora também os bois perambulavam constantemente nesse lugar, compactando gradualmente o solo, limitando cada vez mais a penetração das águas que alimentavam as fontes. Não demorou muito e aquele sítio se tornou um terreno infértil, seco e desértico. A paisagem abundante em vidas e cores agora se tornara em um cenário tristonho. Nos ares empoeirados que abrangiam aquela colina, não se viam mais borboletas nem pássaros. Onde a relva verdejante alimentava o gado, hoje é um ressecado solo vermelho alimentando as lágrimas. Um triste acontecimento que levou Noêmio a vender a preço muito baixo o pouco que restou do seu rebanho, antes que perecessem todos de sede. Agora toda a harmonia se desfizera, o cantar dos passarinhos, os coaxares dos sapos, até mesmo o som dos grilos, todos silenciaram, a paisagem que antes era admirável, agora com semblante entristecida, agonizava na vastidão montanhosa, à mercê das ações imprudentes de um pobre ser na plenitude de sua ingenuidade. Para suprir o consumo da família, tinham que percorrer longas distâncias até algumas poças lamacentas que ainda restavam daquele que antes era um lindo rio. Enfim, a família ficou afundada em uma crise financeira, sobrevivendo às custas de ações caridosas de pessoas que vinham da região. Diante de tal situação, ficaram tão limitados financeiramente que Noêmio teve uma sobrecarga de tristes emoções, sofrendo um infarto, fulminando a sua vida decisivamente. Isso arruinou ainda mais a situação da família, agora não podiam mais nem ao menos contar com aquele que, mesmo sendo tão severo, ainda era em quem depositavam suas únicas esperanças. Apesar de tudo, era trabalhador e estava constantemente tentando solucionar aquela crise. A dor da perda era imensa, afinal aquele homem bravo e temido, na verdade, nunca agredia fisicamente seus filhos nem sua esposa, e por isso não era odiado pela sua família.

Por algum momento, eu fiquei confuso. Até recentemente, estava detestando o pai daquelas crianças, mas agora estava sentindo uma pena. A sua falta de conhecimento, preocupação demasiada com sua família, que o levou a esse triste fim. Mas também confesso que, ao saber de sua partida, tão logo já idealizei como se antevendo uma mudança que pudesse proporcionar mais condições para a felicidade de todos que restaram. O tempo iria passar, amenizando gradualmente aquela tristeza e enfim os rumos certos poderiam ser finalmente tomados, agora sem nenhum obstáculo. Mas não mencionei uma palavra sequer. Apenas esperei a sequência da história para ver se minha intuição estava correta. E como se adivinhasse meus pensamentos, o bondoso contador de causos disse, com um sorriso sutil, que o desfecho de sua narração iria superar inúmeras vezes tudo aquilo que eu estava imaginando. Que eu ficasse preparado para fortes emoções. Fiquei muito curioso e, a essa altura, já torcia para que o sono não viesse em nenhum de nós. Sabia que já era tarde da noite, mas estranhamente não estava nem um pouco com vontade de dormir, e mesmo assim, por algumas vezes, dava a impressão de que aquilo tudo era um sonho, porém, diante da complexidade dos acontecimentos, eu me convencia da realidade. E a chuva ainda caía, soando tal como a trilha sonora daquele filme cuja tela de projeção estava nas profundezas do meu imaginar. Por vezes, os clarões dos relâmpagos atravessavam as frestas, projetando sua luz naquele terno ancião que não expressava nenhum espanto ou temor. Os estrondosos trovões que se ecoavam na distância valorizavam ainda mais aquele conteúdo abrangente e natural que maravilhosamente comigo acontecia, pois sou completamente apaixonado por chuvas, principalmente à noite, com relâmpagos e trovões. Mas nunca imaginei que fosse vivenciar isso de forma tão imprevisível e inesperada. E ele seguia com sua linda e impressionante história.

Apesar de tudo, as tristezas, incertezas entre tantos outros problemas, algo deveria mudar para possibilitar ao menos suas ações mais independentes, tornando assim um desfecho melhor. Ao menos não tinham mais nenhum obstáculo para impedi-los de manifestarem seus dons, principalmente musicais. Mas a realidade apresentou ainda outro problema que impôs mais uma barreira. Em parte, já era tarde demais. Agora traumatizadas, essas crianças não conseguiam cantar em lugar nenhum além daquela gruta. Mesmo lá, cantavam somente um pouquinho e logo um temor inexplicável tomava conta, limitando seus desempenhos e acabavam silenciando. As contínuas reações rudes e negativas de Noêmio a respeito dessa inclinação criaram um sério bloqueio nessas crianças, impedindo-as de cantar e, sempre que tentavam, suas inspirações eram inibidas pela sensação de estarem fazendo algo proibido e pecaminoso. Mas seus talentos, embora restringidos, mantinham-se vivos, como uma centelha esperando a brisa branda para animá-la e transformar-se em imponentes labaredas. Um bom tempo depois, apesar de ainda não terem superado a crise, ao menos conseguiram cultivar algumas coisas e sobreviviam com muita dificuldade. Mas o destino, por razões desconhecidas, parecia mesmo disposto a castigar cruelmente essa família.

Seus relatos me fizeram questionar em silêncio. Por que será que pessoas tão boas experimentam sofrimentos tão severos? Não são raros casos assim mundo afora. E surpreendentemente, mais uma vez, pareceu acessar meus pensamentos ao dizer.

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